Quando São Pedro completou 10 anos, Graça Andreatta publicou um precioso relato histórico de quem participou ativamente do parto, nascimento e formação de um dos mais épicos movimentos comunitários do Espírito Santo. Hoje esgotado, Na Lama Prometida, a Redenção virou fonte de pesquisa imprescindível para a compreensão da Vitória contemporânea ao registrar a luta de migrantes expulsos dos grotões capixabas para vencer em meio à lama e ao lixo da cidade.
Agora, na esteira das comemorações dos 40 anos de São Pedro, celebrados na próxima segunda-feira (4), Graça retorna ao bairro – porém, em verso. A professora, escritora e tradutora lança nesta sexta-feira (1), na sede do Mulheres Unidas de São Pedro (Musp), a história da ocupação de São Pedro em forma de cordel, com folhetos publicados no formato clássico de 10 por 15 centímetros. “É tudo artesanal”, diz ela, que, à falta de guilhotina, está cortando os papeis na base do estilete.
Por que cordel? “Primeiro, porque eu gosto de cordel. E é mais fácil de ler”. Segundo porque ela pensa na juventude do bairro, que, para ela, não se reconhece na história de luta e superação dos pais. Pelo contrário: envergonham-se. “Os jovens que estão chegando agora, só enxergam a parte ruim, do lixo. E em vez de se orgulharem da atividade dos pais, eles se envergonham. O livro é para mudar isso aí que não sei nem que nome dar…”, explica.
Daí, por exemplo, a mensagem de êxito e esperança dos versos abaixo:
Como a gente se uniu
Foi assim o grande motivo
De conquista e sucesso
E de muito cidadão estar vivo.
O povo sempre chegando
Ruas eram uma conquista
Imaginárias no mangue
Junto ao mar. Que bela vista!
A carga emocional do cordel é evidente. Em Na Lama Prometida, a Redenção, Graça assimilava uma experiência ainda surpreendente para todos e produziu um “real emotivo”, como ela classifica o livro, que ganhou tradução italiana e foi dado de presente ao Papa João Paulo II. Ali ela registra o poder incrível de organização que engendrou São Pedro.
Graça chegou em São Pedro no Carnaval do ano de fundação do bairro junto com o então marido, Ruy Coelho, também personagem de extrema importância para a história local – chegou a presidir o Movimento Comunitário do Bairro de São Pedro. O casal fugia da ditadura militar. No Rio de Janeiro, Ruy amargara três meses de prisão e tortura e a capixaba Graça sugeriu o Espírito Santo como refúgio contra a violência oficial.Para não dar na vista, evitaram casa de parentes e foram parar em São Pedro, onde a luta política renasceria quase que de imediato para ambos. A experiência política acumulada catalisou o envolvimento do casal nos problemas da comunidade. A organização que os moradores mostrariam, surgiu daí, de forma quase espontânea. De repente, toda terça-feira tinha reunião para discutir os problemas. Graça trabalhava o tempo todo com educação popular, sempre com o auxílio de outras pessoas.
Naqueles anos, Vitória era a terra prometida de migrantes do interior e de municípios de Minas Gerais e sul da Bahia. Era época ainda da desativação do canteiro de obras da então Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST; hoje Arcelor-Mittal).
Foi essa massa de pobres e iletrados acolhida pelo mangue de São Pedro, que, então, recebia todo o lixo produzido em Vitória e de todo o tipo (residencial, comercial, hospitalar e industrial), restos que garantiam a sobrevivência de famílias que habitava barracos minúsculos e andavam sobre a lama em pinguelas, sem acesso a serviços e equipamentos públicos.
Élcio Alves – humano governado, saudoso político.
Em 4 de setembro de 77, numa solenidade pública de instalação de postes de iluminação, que Graça registrou em ata as palavras do então governador Elcio Alvares autorizando as famílias a permanecerem na região. No início do ano, assistentes sociais do governo foram ao bairro tentar convencer as famílias a trocar o local por um projeto do Banco Nacional de Habitação (BNH) nos confins da Serra. Nada feito. O governo capitulou e executou obras de aterro e iluminação pública.
O cordel festeja o passado glorioso sem ingenuidade nostálgica, nem comemoração rasteira. Cita passagens com Dom João Batista e Dom Luís Gonzaga Fernandes, próceres religiosos ligados às aflições do povo pobre; pequenas histórias do cotidiano, como a amarração de canos d’água às pinguelas para não afundarem na lama; com o padre Estevão, que celebrou a primeira missa no local; ou de seu Manoel, um dos primeiros moradores e protagonista do primeiro casamento do bairro; e de Judite, a primeira secretária do Movimento Comunitário do Bairro São Pedro.
Relembra ainda a Associação dos Catadores de Vitória (Acatavi), criada em 1982 após uma vitoriosa greve de 500 catadores, e a usina de compostagem, filhos da luta e organização dos moradores de São Pedro. Por fim, cita por nomes e apelidos as inúmeras pessoas que ajudaram a construir São Pedro. Marias, Fátimas, Marlenes, Antônios, Josés, Baiano, Ceará, Ligeirinho.
A partir de segunda-feira (4), Graça se debruça sobre um novo livro, em que vai falar de política. E, em novembro, tem mais comemoração: completa 70 anos no dia 24, que serão devidamente festejados na Rua Sete de Setembro, no Centro de Vitória.
E DEUS VIU QUE ERA BOM
Era uma vez em Vitória
Estado do Espírito Santo
Um manguezal florescente
Cheio de árvores e encanto.
Garças e caranguejos
Exibiam-se para o mar,
Enquanto homens cansados
De buscar e trabalhar
No final da jornada podiam
Sequer ter família, um lar.
Vieram do campo sozinhos
Não tinham onde morar
Expulsos pelo pé do boi
Cana de álcool e eucalipto,
Deixaram suas casinhas
E vieram para a cidade
Sonhando com dias melhores
Encontraram crueldade
Fonte: Século Diário.
Edição; Mario Barnabé Berardinelli Bernabé